A tecnologia de reconhecimento facial é uma das grandes inovações que se incorporaram à nossa rotina nos últimos anos. Porém, este crescimento em popularidade e utilização não ocorre sem controvérsias, e os riscos destas tecnologias devem ser considerados e debatidos.
A Tecnologia de Reconhecimento Facial
Desde as notícias de gigantes do desenvolvimento de tecnologia como IBM, Microsoft e Amazon declarando que iriam interromper o fornecimento de seus sistemas e softwares de reconhecimento facial às forças policiais norte-americanas em meio às ondas de protestos de junho deste ano, a tecnologia de reconhecimento facial se tornou assunto recorrente e tema de diversos debates.
Porém, seja por meio de filtros em fotos, aplicativos que reconhecem seus amigos nas fotos, desbloqueio rápido de laptops e celulares simplesmente com o direcionamento da câmera ao rosto do usuário e até para embarcar em aviões em companhias como Delta, JetBlue e Gol, o reconhecimento facial já vem se tornando cada vez mais comum ao longo da última década.
O que chamamos de tecnologia de reconhecimento facial, na verdade, engloba alguns sistemas diferentes com diferentes funcionalidades, podendo ser enquadrados na categoria de Facial Processing Technology (Tecnologias de processamento facial, ou FPT). Podemos dividir as FPTs em três categorias baseadas no objetivo final do sistema [1]:
- Detecção Facial
A detecção facial consiste em simplesmente encontrar rostos em uma imagem. Um exemplo clássico da detecção facial são as “caixas” que delimitam onde estão os rostos na tela de uma câmera digital e, atualmente, na tela dos celulares.
- Análise Facial
A análise facial é um pouco mais complexa que a mera detecção, buscando reconhecer as características do rosto, como sorrisos, lágrimas, expressões facial em geral, bem como traços gerais como cor de pele, idade aparente, etc.
- Identificação Facial
Por fim, a identificação facial consiste em “linkar” o rosto detectado e analisado com a identidade de algum ser humano registrado na base de dados. É a identificação facial que permite, por exemplo, que seu celular confirme se a pessoa olhando para a câmera para desbloqueio de tela é a mesma pessoa registrada como dona daquele dispositivo.
Podemos descrever o funcionamento destas tecnologias em 5 etapas sucessivas [2]:
- Captura de imagem
- Detecção Facial
- Extração de características
- Combinação com a base de dados
- Identificação pessoal
A identificação pessoal pode ocorrer de dois modos distintos, dependendo de seu objetivo. Caso seu objetivo seja a verificação da identidade, se compara a imagem capturada somente com as imagens da pessoa cuja identidade se deseja confirmar. Ou seja, a imagem da pessoa na frente da câmera do celular será comparada somente com fotos e imagens do dono do celular registrado para o desbloqueio. Este sistema responde à questão: “A pessoa nas imagens é a mesma registrada?”
Por outro lado, se o objetivo do reconhecimento facial é descobrir qual a identidade de uma pessoa, se compara sua imagem à todas as imagens presentes no banco de dados disponível. Este sistema responde à questão “Quem é esta pessoa?”.
Conhecendo melhor o funcionamento da tecnologia, podemos concluir que alguns dos processos essenciais para seu funcionamento são a retirada e o processamento de imagens de rostos e a comparação destas imagens com bases de dados de imagens similares.
Nos últimos anos as FPTs se tornaram presentes em diversos contextos e áreas do nosso dia a dia. Como já citado anteriormente, o reconhecimento facial já vem sendo amplamente utilizado por redes sociais em diversas de suas funcionalidades, como o reconhecimento de amigos em fotos ou os filtros do instagram.
O reconhecimento facial também vem sendo implementado em lojas e espaços públicos para analisar as reações dos clientes ao interagirem com seus produtos. Um exemplo é a “loja inteligente” da Havaianas aberta no Shopping Iguatemi em São Paulo em dezembro de 2019. A loja tem como diferencial um painel interativo que conta a história da marca e oferece produtos aos clientes, enquanto estes tem todas suas reações e movimentos registrados por câmeras que efetuam a análise facial. O objetivo desta análise é registrar como os clientes se comportam em cada situação, para destes dados construir uma experiência de compra personalizada.
Outro exemplo recente e relevante de implementação de reconhecimento facial é a sua utilização em serviços públicos. Desde a instalação de câmeras de reconhecimento facial em ônibus e terminais em diversas cidades do país com o objetivo de evitar fraudes na isenção de tarifa para idosos e estudantes até o aplicativo de RG Digital implementado em São Paulo, a tecnologia também é implementada pelo Estado.
A partir de 20 de agosto deste ano, os beneficiários do INSS podem fazer sua prova de vida por meio dos apps Meu INSS e Meu Gov.br, que utilizam a biometria facial para reconhecer o beneficiário. O App Meu Gov.br, assim como o RG Digital de São Paulo, permite que o reconhecimento facial substitua a necessidade de comprovação de documentos de identidade em certas situações.
Riscos da Tecnologia e sua relação com a LGPD
Se alguns dos exemplos citados acima lhe causam preocupação ou parecem desconfortáveis, você não é o único. Junto com a popularidade da tecnologia vem diversas questões éticas e práticas sobre sua utilização.
De acordo com a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), os dados que precisam ser coletados e tratados para o funcionamento das tecnologias de reconhecimento facial são dados biométricos, e, portanto, sensíveis.
A lei define dado sensível como:
“dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural;”
Para a LGPD, qualquer tratamento de dado pessoal sensível exige não somente o consentimento expresso atrelado à uma finalidade específica, mas também, por serem dados que podem acarretar possíveis danos à direitos individuais e liberdades civis, está sujeito à medidas como a aplicação de um Relatório de Impacto à Proteção de Dados Pessoais.
O reconhecimento facial pode ser mais problemático, porém, do que muitas outras categorias de dados pessoais sensíveis uma vez que sua coleta pode facilmente ocorrer de forma unilateral. Quando um indivíduo preenche um formulário ou assina um termo de uso ou contrato, ele está, ao menos superficialmente, consciente dos dados que está disponibilizando, e consciente do próprio ato de coleta de seus dados. Porém, como ficam disposições da LGPD como, por exemplo, a necessidade de um consentimento informado, livre, inequívoco e atrelado à uma finalidade, no caso de uma câmera que automaticamente coleta e processa seus dados biométricos?
Considerando esta situação, o Ministério Público multou a empresa Hering em R$ 58.767,00 por impor à seus consumidores e clientes a coleta e o processamento de dados biométricos por câmeras de reconhecimento facial sem antes obter o seu consentimento. Esta multa, aliás, já ocorreu com base no Código de Defesa do Consumidor, antes mesmo da plena validade da LGPD. Com a LGPD em vigor, este tipo de ação e multa será mais recorrente e incisivo, especialmente pois a lei traz maiores exigências à empresa que trata os dados e um maior leque de direitos que devem ser garantidos aos titulares de dados.
Em ações similares, a concessionária ViaQuatro, que administra o Metrô da cidade de São Paulo, foi questionada sobre a implementação de reconhecimento facial em suas dependências. Em uma ação de 2018 a concessionária foi ordenada a descontinuar o projeto “Portas Digitais”, em que eram utilizadas tecnologias de reconhecimento facial para analisar os rostos dos passageiros do serviço público para fins publicitários, similares aos da loja inteligente da Havaianas e da Hering. No momento, corre na justiça outro processo contra a concessionária sobre a implementação de outro sistema de reconhecimento facial, desta vez com a finalidade de vigiar e monitorar passageiros para impedir assaltos e identificar foragidos da justiça.
O motivo pelo qual os dois usos de reconhecimento facial pela concessionária são diferentes é exatamente sua finalidade. Enquanto a justiça brasileira vem decidindo de maneira clara que o reconhecimento facial sem consentimento dos titulares é proibido para fins publicitários e comerciais, quando este fim está ligado à segurança pública ainda não existem respostas claras.
Isto ocorre porque a Lei Geral de Proteção de Dados traz algumas exceções e alternativas ao consentimento no tratamento de dados sensíveis e biométricos. Segundo a lei,
Art. 11. O tratamento de dados pessoais sensíveis somente poderá ocorrer nas seguintes hipóteses:
I – quando o titular ou seu responsável legal consentir, de forma específica e destacada, para finalidades específicas;
II – sem fornecimento de consentimento do titular, nas hipóteses em que for indispensável para:
e) proteção da vida ou da incolumidade física do titular ou de terceiro;
A questão que atualmente está sendo debatida é exatamente a de se a implementação de câmeras de reconhecimento facial nas linhas de metrô é indispensável para a proteção da vida do titular ou de terceiro. A mesma discussão ocorre em relação aos já citados acima usos de reconhecimento facial por aplicativos como o Meu Gov.br e Meu INSS, já que junto com a exceção da proteção da vida ou da incolumidade física do titular ou de terceiro também está disposta a exceção para:
g) garantia da prevenção à fraude e à segurança do titular, nos processos de identificação e autenticação de cadastro em sistemas eletrônicos, resguardados os direitos mencionados no art. 9º desta Lei e exceto no caso de prevalecerem direitos e liberdades fundamentais do titular que exijam a proteção dos dados pessoais.
Novamente, o que se questiona é se o reconhecimento facial é indispensável para a autenticação do cadastro nos sistemas eletrônicos em questão.
Outro exemplo de questão polêmica ainda em debate sobre a utilização de reconhecimento facial é sua implementação por agências de polícia para garantir a segurança pública. A Lei Geral de Proteção de Dados não se aplica para o tratamento de dados efetuado para fins exclusivos de segurança pública, que deve ser regulado por lei própria que está em fase inicial de desenvolvimento, o que a princípio permite o tratamento de dados biométricos neste contexto.
Os dados disponíveis sobre a implementação da tecnologia no contexto de segurança pública levantam grande preocupação: em Londres, a Metropolitan Police efetuou uma série de 8 testes da tecnologia ao longo de dois anos, entre 2016 e 2018. Ao final dos testes, a média de falsos positivos (erros nos quais o sistema reconhecia um transeunte como suspeito ou foragido da justiça de forma errada) chegou a assustadores 96% [3]. Em Detroit, nos Estados Unidos, após um ano de implementação de um sistema de reconhecimento facial que custou à polícia da cidade mais de US$1 milhão de dólares, a taxa de erro do sistema foi de mais de 95%, segundo o prefeito da cidade [4].
No Brasil em 2019, ao menos trinta cidades em dezesseis estados já utilizavam a tecnologia nos setores de transporte, segurança pública, controle de fronteiras e educação [5]. Levantamento efetuado pela Rede de Observatório de Segurança coletou os dados de todas as prisões efetuadas no Brasil com base no reconhecimento facial em 2019. Dentre as prisões cujos registros continham informações sobre o perfil dos presos, o número alarmante de 90,5% das prisões foram de pessoas negras. Este resultado racista pode ser atribuído às bases de dados utilizadas pelos sistemas de reconhecimento facial, que muitas vezes são compostas majoritariamente por fotos de indivíduos brancos, o que aumenta a margem de erro do sistema em mulheres e pessoas não-brancas [6].
A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, ainda que não regule exatamente estes casos de tratamento de dados biométricos, traz alguns princípios que se aplicam para todo e qualquer tratamento de dados no país, dentre eles alguns que devem ser considerados pela sociedade quando debatendo tecnologias que tem tanto potencial de interferir nos direitos e liberdades dos indivíduos, como o princípio da prevenção de danos ao titular de dados e o princípio da não-discriminação.
Fontes:
[1] BUOLAMWINI, Joy; DENTON, Emily; GEBRU, Timnit; LEE, Joonseok; MITCHELL, Margaret; RAJI, Inioluwa. Saving Face: Investigating the Ethical Concerns of Facial Recognition Auditing. In Proceedings of the 2020 AAAI/ACM Conference on AI, Ethics, and Society (AIES ’20), 2020, p. 145. Disponível em: https://dl.acm.org/doi/10.1145/3375627.3375820.
[2] KAUR, Paramjit, KRISHAN, Kewal, SHARMA, Suresh K.; KANCHAN, Tanuj. Facial-recognition algorithms: A literature review. Medicine, Science and the Law,vol. 60, n. 2, 2020, p. 134.
[3] DEARDEN, Lizzie. Facial recognition to be rolled out across London by police, despite privacy concerns. The Independent. Publicado em 24 jan. 2020, Disponível em https://www.independent.co.uk/news/uk/crime/facial-recognition-london-met-police-scotland-yard-privacy-a9299986.html.
[4] GROSS, Allie. Detroit’s facial recognition contract set to expire – here’s a look back at the last 3 years. WXYZ Detroit. Publicado em 21 jul. 2020. Disponível em: https://wxyz.com/news/region/detroit/detroits-facial-recognition-contract-set-to-expire-heres-a-look-back-at-the-last-3-years.
[5] INSTITUTO IGARAPÉ. Reconhecimento Facial no Brasil, 2019. Disponível em: https://igarape.org.br/infografico-reconhecimento-facial-no-brasil/.
[6] REDE DE OBSERVATÓRIOS DE SEGURANÇA. Retratos da Violência: Cinco meses de monitoramento, análises e descobertas. Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) da Universidade Candido Mendes, jun./out., 2019.
Time BL Consultoria Digital – Direito Digital e Análise Regulatória
Este artigo “Reconhecimento Facial: Tecnologia cada vez mais presente no dia a dia“ foi escrito Por Rodrigo Glasmeyer. Conheça o BL Consultoria Digital, acesse aqui!